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Por que o número de processos contra companhias aéreas é tão alto no Brasil

Por que o número de processos contra companhias aéreas é tão alto no Brasil

O volume de processos contra companhias aéreas no Brasil é incompatível com o tamanho do mercado nacional. O setor aéreo brasileiro é o sétimo maior do mundo, segundo a consultoria Cirium, bem atrás do líder do ranking global de aviação: os Estados Unidos. No entanto, o índice de judicialização no setor aéreo norte-americano é de uma nova ação a cada 1.254.561 passageiros, enquanto no Brasil a proporção é de uma nova ação a cada 227 passageiros, de acordo com dados de 2019 do Bernardi & Schnapp Advogados. 

Para tentar entender o motivo que leva brasileiros a buscarem tanto a Justiça para resolver seus conflitos com as companhias aéreas, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) fez um estudo em parceria com a plataforma SpotLaw sobre as ações judiciais setor aéreo. A hipótese que a associação defende é a de que o volume de ações é inflado pelo ambiente legislativo brasileiro associado à litigância predatória impulsionada por ferramentas de marketing digital, compra de créditos judiciais e um comércio de vouchers de viagens.

Ao analisar mais de 400 mil processos judiciais cadastrados em todos os Tribunais de Justiça do Brasil, a Abear notou um comportamento anormal na distribuição de processos: em 2022 e 2023, quando o crescimento do número de voos após a pandemia girava em torno de 35% e 8%, respectivamente, o volume de ações cresceu 67% (2022) e 103% (2023) quando comparado ao ano anterior.

Para a associação, esse aumento não é um reflexo da qualidade do serviço prestado, já que, de acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), só 3% dos voos previstos no ano passado foram cancelados e 85% deles pousaram pontualmente.

O estudo também identificou uma concentração nos processos: 20 advogados ajuizaram 10% do total de ações analisadas contra as aéreas no país. Para a Abear, isso é indício de que “existe um incentivo não estrutural que leva ao excesso de processos contra as principais companhias aéreas que operam no Brasil”.

O problema, na visão da associação, é incentivado em grande medida por empresas de tecnologia que facilitam a judicialização por parte dos consumidores, como AirHelp, Mova, Liberfly, Indenizar, Resolvvi, DireitoJá e VoeTranquilo. Muitas dessas plataformas investem em publicidade nas mídias sociais para chegar até os passageiros e encontrar aqueles que tiveram problema nos voos.

Algumas dessas empresas conectam os passageiros com advogados e escritórios, enquanto outras compram o direito de judicialização deles. Nesses casos de compra, o consumidor ganha um valor à vista e a empresa se responsabiliza por entrar na Justiça. Depois, caso a ação seja favorável ao consumidor, a plataforma fica com a indenização em dinheiro ou em vouchers de viagem, que depois, de acordo com a Abear, são revendidos.

A Abear destaca também o papel de influenciadores digitais, que incentivam que os consumidores acionem as companhias na Justiça com o lema “problemas em viagens geram novas viagens”.

Para Jurema Monteiro, presidente da Abear, o efeito colateral dessa cultura de judicialização é o aumento do preço do serviço. “No Brasil, o setor aéreo gasta um R$ 1 bilhão por ano com ações judiciais, isso se reflete no preço dos bilhetes e pesa na avaliação de risco de investidores que querem operar no país”, diz.

Só a LATAM, em 2024, prevê um gasto de mais de R$ 350 milhões com os custos da judicialização no país. “Isso significa que R$ 10 de cada passagem dos mais de 30 milhões de passageiros anuais da empresa são destinados para custos com esse fenômeno brasileiro”, afirma a empresa em nota enviada ao JOTA.

O mercado brasileiro hoje representa metade da operação do grupo LATAM, mas é responsável por mais de 98% dos processos judiciais. No ano passado, a companhia registrou um aumento de quase 33% no número de ações judiciais no Brasil em relação a 2022.

A reportagem também procurou a Gol e a Azul, mas não obteve retorno até a publicação.

As empresas de tecnologia

As startups e empresas de tecnologia que trabalham na resolução de problemas dos consumidores com as aéreas rechaçam as críticas de que incentivam a judicialização no país. No geral, elas defendem que utilizam a tecnologia de maneira ética para ajudar os clientes que se sentiram lesados pelo serviço prestado pelas companhias.

A brasileira Liberfly, que atua desde 2016 no mercado, é uma das empresas que trabalha com o modelo de compra do direito jurídico dos passageiros. Em nota enviada ao JOTA, a companhia afirmou que busca “fornecer um conforto aos consumidores que vêm sendo lesados diariamente pelos serviços precários de algumas empresas” e que sempre sugere que o consumidor, antes de optar pela via judicial, faça sua reclamação em órgãos como Procon e Reclame Aqui.

Já a Resolvvi, fundada em 2017, opera como uma intermediária entre os passageiros e os escritórios de advocacia. A empresa chega até os consumidores por meio de anúncios em plataformas de busca, como o Google, e filtra os casos que considera adequados para uma ação judicial.

Segundo Bruno Arruda, presidente e fundador da companhia, cerca de 70% dos casos que chegam são rejeitados. Isso garante à empresa um nível de sucesso de 90% nas ações que são de fato ajuizadas – até hoje, 20.000 clientes já foram atendidos pela startup.

A remuneração do negócio vem dos cerca de 45 escritórios de advocacia que pagam para figurar na plataforma. Além de conectá-los com o cliente, a empresa oferece ferramentas de gestão de processos, automatização de protocolos e previsão de resultados.

“Com 90% de sucesso, não fazemos litigância predatória. O problema da judicialização [no Brasil] é fruto de uma junção de qualidade do serviço, mercado concentrado em poucos players e falta de regulação”, rebate Arruda. O empresário afirma que o sonho da empresa seria operar fora da Justiça, com negociações diretas com as companhias, mas ainda não conseguiu fechar uma parceria.

Já na AirHelp, o cliente só paga uma taxa quando recebe uma compensação da companhia aérea. A empresa iniciou suas operações em 2013 na Europa e chegou ao Brasil em 2018. Ao todo, a companhia já ajudou mais de 2,3 milhões de pessoas a receber indenizações por atraso, cancelamento ou overbooking em voos no mundo todo.

Ao JOTA, Luciano Barreto, diretor-geral da AirHelp no Brasil, disse que a empresa atua majoritariamente de forma extrajudicial e só recomenda aos clientes entrar na Justiça em último caso. Para ele, a judicialização no setor aéreo brasileiro é uma consequência natural da busca dos consumidores por compensação por serviços inadequados.

Barreto acredita que esse problema poderia ser minimizado se as companhias adotassem práticas mais transparentes e eficientes, além de promover a adoção de soluções extrajudiciais. Na Europa, por exemplo, a empresa resolve mais de 60% dos casos diretamente com as companhias aéreas.

Quanto às particularidades do mercado brasileiro, o diretor afirma que no país “há uma forte cultura de busca por justiça quando os direitos dos consumidores são violados”. Na visão da empresa, o amplo acesso à justiça por parte da população permite que os consumidores lutem por seus direitos em diversas áreas, o que é positivo.

Litigância predatória?

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está monitorando a atuação dessas empresas para avaliar se elas promovem litigância predatória. Em 2022, a OAB conseguiu na Justiça a suspensão da operação de 37 sites que estimulavam a litigância contra as áreas, por publicidade ilegal e exercício irregular da advocacia.

Nem toda empresa que atua nesse segmento é necessariamente antiética  ou atua com má-fé, na visão de Roberta Fagundes Leal Andreoli, presidente da comissão especial de Direito Aeronáutico da OAB-SP e sócia-fundadora do Leal Andreoli advogados.

O que a advogada considera inaceitável é que algumas dessas empresas, de forma massificada, vendam o seu serviço como a solução para um problema que o próprio passageiro, às vezes, não tinha identificado. “Quando os sites e escritórios apresentam o produto, eles induzem essa sensibilidade excessiva no consumidor, que talvez não fosse entrar na Justiça por conta própria”, diz Leal Andreoli.

No entendimento de Ricardo Fenelon, sócio do Fenelon Barreto Rost e ex-diretor da Anac, essas companhias profissionalizaram a judicialização, o que levou o número de ações a crescer em progressão geométrica, não mais aritmética. “Virou quase um negócio, com a indenização de um voo com problema dá para comprar outras cinco novas passagens. É um estímulo alto para judicializar”, diz o advogado.

Já Fernando Villela, coordenador do comitê de regulação de infraestrutura aeroportuária da FGV Direito Rio, acredita que o sucesso dessas plataformas é um sintoma de uma doença maior. Na visão dele, essas empresas facilitam a exploração do sistema jurídico, mas se o entendimento do Judiciário sobre as indenizações do setor aéreo fosse outro, elas não teriam espaço para atuar.

“O Judiciário acaba sendo muito protetivo ao consumidor. Ao longo dos anos, houve uma interpretação muito mais favorável ao passageiro, talvez baseada na ilusão de que as companhias aéreas são grandes empresas, com muito dinheiro, e precisam oferecer um serviço sempre perfeito”, diz Villela.

Na visão do especialista, o fato de os Estados Unidos, um país conhecido pela “indústria do dano moral”, ter menos ações judiciais que o Brasil indica que o problema está no sistema jurídico brasileiro. “Talvez a melhor solução seja uma legislação federal que estabeleça critérios objetivos para as questões envolvendo a qualidade do serviço aéreo. Sem uma norma orientando o que é indenizável ou não, fica muito difícil”, afirma o advogado.

Estrutura jurídica

A falta de normas talvez não seja o problema, mas sim a interpretação delas. Ricardo Catanant, especialista em regulação e diretor da Anac, defende que a indústria brasileira não destoa das práticas internacionais quanto à estrutura regulatória, aos modelos de contratos e à auditoria. A qualidade do serviço aéreo no país, medida por indicadores de pontualidade e de extravio de bagagens, também está entre as melhores do mundo.

“Não é um problema que aparece só no setor. Ouvimos falar de problemas da judicialização excessiva também na saúde, com bancos, telefonia. Temos que discutir porque tudo, no Brasil, é levado para o Judiciário”, diz o diretor da Anac.

A resolução 400 da Anac, por exemplo, estabelece uma série de compensações que as companhias aéreas precisam prover ao cliente em caso de problemas na prestação do serviço. Mesmo assim, aponta Catanant, os consumidores vão ao Judiciário pedir reparação por danos morais quando acontece algum problema no voo.

“Há uma construção jurisprudencial no Brasil do dano moral punitivo. Outro problema é que o dano moral é presumido, o consumidor não precisa provar, basta mostrar que houve cancelamento ou atraso e a maior parte dos juízes aceita o pedido”, diz Catanant.

Roberta Andreoli, da OAB-SP, lembra que o Código Brasileiro de Aeronáutica estabeleceu que o dano moral não pode mais ser presumido, de forma que é preciso que o consumidor prove que houve prejuízo. “O problema é que, muitas vezes, o juiz não está familiarizado com essas normas. É preciso conscientizar tanto passageiros quanto magistrados sobre as regras aplicáveis nos contratos de transporte aéreo”, diz a advogada.

Para a IATA, há uma falha na interpretação jurídica que diferencia a forma que o Brasil trata problemas no setor aéreo do resto do mundo. Em entrevista ao JOTA, Orácio Marques, diretor regional para América Latina da associação, defende que os tratados internacionais de Montreal e Varsóvia, que unificaram certas regras do transporte aéreo internacional, deveriam ser a base para as diretrizes legais brasileiras.

“Nosso objetivo é dar visibilidade ao assunto para que os juristas reconheçam que o tipo de jurisprudência que existe no Brasil é uma anomalia e é inconsistente com a interpretação legal que vemos em outras partes do mundo”, diz o diretor.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por outro lado, acredita que o problema do excesso de processos é devido à complexidade das normas regulatórias, à insatisfação dos consumidores com os serviços prestados e à percepção de que recorrer ao Poder Judiciário é uma forma eficaz de obter reparação.

Em nota enviada ao JOTA, a AMB diz que Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania têm contribuído para uma resolução mais rápida das controvérsias por meio da conciliação e da mediação. Para ir além, a associação, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e com quatro associações do setor de aviação, está trabalhando em um estudo diagnóstico sobre o problema.

“O objetivo é identificar as razões pelas quais o Brasil é líder mundial em litígios na área, por meio da análise de dados de processos distribuídos em Tribunais de Justiça, além de informações fornecidas pelas próprias empresas”, afirma a AMB.

Defesa dos consumidores

A Anac defende que as companhias podem contribuir para minimizar o problema se incentivarem o uso de vias não judiciais, como a plataforma Consumidor.gov.br e o próprio serviço de atendimento ao cliente (SAC). “A ideia é que o Judiciário seja reservado para situações em que houve um problema grave e com negativa de reparação”, afirma Catanant.

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) também acredita que as empresas do setor deveriam investir mais no trato direto com os consumidores para diminuir o número de processos.

Em entrevista ao JOTA, Vitor Hugo do Amaral Ferreira, diretor do departamento de proteção e defesa do consumidor da Senacon, apontou que o número de reclamações sobre o SAC das companhias aéreas têm aumentado na plataforma Consumidor.gov.br. “Era uma reclamação que aparecia, no máximo, em oitavo ou sexto lugar. Nos últimos anos, o SAC tem oscilado entre as reclamações mais frequentes, no terceiro ou no segundo lugar”, diz.

Questionado sobre a possibilidade de litigância predatória no setor por parte das startups e empresas de tecnologia, Amaral Ferreira admite que há casos em que  consumidores são enganados por anúncios que vendem a possibilidade de sucesso em ações contra companhias aéreas, mas ele acredita que casos assim são minoria. “Boa parte das demandas que existem contra as companhias do setor aéreo são de fato relativas a direitos dos consumidores que não foram cumpridos”, afirma o diretor.

Para a Associação Nacional em Defesa dos Direitos dos Passageiros (Andep), o serviço prestado por algumas companhias está realmente abaixo da expectativa do consumidor, mas não justifica a atuação das startups e empresas de tecnologia. “Estimular o passageiro a ingressar em juízo não é o caminho”, diz Cláudio Candiota Filho, presidente da Andep.

A associação mapeou que as maiores reclamações dos passageiros são em relação à falta de informação adequada e à falta de assistência após  cancelamentos e atrasos de voos. De acordo com Candiota Filho, esses conflitos poderiam ser resolvidos se houvesse no mercado brasileiro mais fiscalização e punição administrativa.

“Na Europa, a maioria das questões entre passageiros e companhias aéreas é resolvida no aeroporto e não no Judiciário, porque as multas administrativas em caso de negligência são altas”, avalia.